EXISTE MALDIÇÃO HEREDITÁRIA?

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Você já deve ter ouvido falar muito de maldição hereditária (ou maldição de família ou pecado de geração). Trata-se de assunto muito popular no meio evangélico.

Quem acredita nisso defende que certas pessoas estão sujeitas à maldição por terem nascido em determinada família. A origem da maldição seriam pecados dos antepassados – palavras indevidas proferidas por eles, bens “contaminados” que passaram de pai para filho, etc.
  
Esse tipo de problema, segundo tal tipo de pensamento, geraria consequências terríveis para sucessivas gerações, sendo os descendentes de tais famílias acometidos por doenças (como alcoolismo ou câncer), tendo maior propensão ao adultério, correndo maior risco de acidentes, etc.

Essas consequências terríveis seriam causadas por demônios que atuariam junto àquela família ao longo do tempo. Ficam como “agarrados” ao dia-a-dia daquele grupo social, fazendo tudo para trazer a desgraça para aquelas pessoas.

E acabou sendo desenvolvido, no meio evangélico, todo um conjunto de práticas para combater a maldição hereditária, que vão de cursos e seminários para formação de especialistas em quebrar tal tipo de maldição, até cultos de libertação e outras ações pastorais específicas para esse assunto. Essas práticas acabam atraindo grande interesse do público evangélico porque a crença na maldição hereditária é muito difundida.

Existe justificativa bíblica para a maldição hereditária?
O conceito de maldição hereditária foi desenvolvido no final da década de setenta por líderes pentecostais norte-americanos. No Brasil, esse tipo de teologia encontrou terreno fértil, como forma de combater as religiões de origem africana e o espiritismo, bastante populares entre nós. E, infelizmente, esse movimento tem feito mal a muitas pessoas, como mostrarei adiante.

Antes de ir adiante, é preciso ver o que a Bíblia fala a esse respeito. O texto básico usado por quem acredita na maldição hereditária é Êxodo capítulo 20, versículo 5, onde está dito que Deus “visita” a iniquidade feita pelos pais, nos/as filhos/as, até a quarta geração.

De acordo com essa linha de pensamento, os pecados dos pais podem gerar maldições hereditárias transferidas para seus descendentes. E como os descendentes, muitas vezes, acabam por pecar da mesma forma, a maldição vai se perpetuando indefinidamente, até ser quebrada.

Outro texto usado para defender essa ideia é Romanos capítulo 5, versículo 12, onde Paulo fala que todos os seres humanos sofrem consequências por causa do pecado de Adão, o primeiro homem. Ora, se há uma maldição hereditária, gerada por Adão, podem existir outras maldições da mesma natureza.

Quando a maldição hereditária é diagnosticada, diz essa doutrina, torna-se necessário fazer algumas coisas para quebrar o ciclo negativo: por exemplo, a expulsão de demônios, o descarte de bens “contaminados”, pedidos de perdão em nome dos antepassados, etc.

Felizmente, não há embasamento bíblico para essas conclusões todas. Em primeiro lugar, porque o texto do Êxodo acima citado se refere às consequências do pecado sendo sentidas pelas gerações posteriores e não de uma maldição.

Por exemplo, filhos de pais alcoólatras podem sofrer de abusos, mal tratos,  etc, o que contribui para que eles, por sua vez, também se tornem pessoas desequilibradas e possam vir a abusar dos seus próprios filhos/as, ou vir a ter problemas de saúde. Não se trata de uma maldição em funcionamento e sim da propagação das consequências dos pecados passados.

Da mesma forma, que a grande chaga da escravidão ainda gera desigualdades sociais no Brasil dos dias de hoje. Os/as negros/as nunca tiveram as mesmas oportunidades que as pessoas brancas e isso se reflete em condições de vida piores, menor expectativa de vida, maior índice de criminalidade, etc. 

Em segundo lugar, a Bíblia nos diz que o/a filho/a nunca reparte a culpa com o/a pai/mãe e vice versa (Ezequiel capítulo 18, versículo 20). Cada pessoal é responsável pelos pecados que comete, inclusive perante a justiça dos homens. E é interessante observar que quando alguém usou o ditado popular “os pais comeram uvas verdes e os dentes dos filhos é que se embotaram”, Deus respondeu que esse provérbio não deveria nunca ser usado (Ezequiel capítulo 18, versículos 2 a 4).

A terceira razão para não existir maldição hereditária toma por base o mesmo texto de Romanos acima citado. Nele, Paulo disse que o sacrifício de Jesus acabou com as consequências do pecado de Adão. Se Paulo estava mesmo falando de maldição hereditária, o que é muito questionado, tal problema acabou 2.000 anos atrás, com a crucificação de Jesus.

E Paulo ainda falou que Jesus levou sobre si os nossos pecados e maldições e, por conta de suas feridas, fomos sarados/as.

A última razão para justificar que não existe esse tipo de maldição é o fato que a maldição bíblica nada tem a ver com pragas, “olho gordo”, etc, coisas comuns no pensamento brasileiro. A maldição bíblica decorre do pecado da própria pessoa – em outras palavras, é ela que causa o problema para si mesma. Ora, sendo assim, não há qualquer sentido que filhos/as paguem por algo que os pais teriam feito. 

Consequências dessa doutrina 
Na prática, costumam ocorrer três tipos de problemas para quem acredita em maldição hereditária. O primeiro deles é o excesso de diagnósticos de maldições – acabam sendo tantas as “ocorrências”, que as pessoas acabam fragilizadas e inseguras. 

O segundo problema é que, na ânsia de quebrar a maldição, as pessoas acabam sendo aconselhadas a fazer o que não deveriam, como difamar o nome dos antepassados, coagir familiares a confessar coisas sem sentido, descartar bens de valor, etc.

O terceiro problema tem a ver com o fato que os/as líderes cristãos/ãs que acreditam no conceito de maldição hereditária não concordam muito entre si quanto ao que deve ser feito para superá-la – basta ler os livros falando sobre esse tema, para ter comprovação do que acabei de falar. Por causa disso, as pessoas que acreditam nisso acabam ficando muito confusas. 

Conclusão
Não existe a tal maldição hereditária – esse é um conceito desenvolvido recentemente que não tem respaldo bíblico. Esse desenvolvimento teológico nasceu na segunda metade do século passado e ganhou força por conta da sua novidade.

Certamente que há pessoas sinceras defendendo essas idéias e eu mesmo conheço algumas delas. Mas um erro sincero, não deixa de ser um erro e pode causar prejuízos. Simples assim

Com carinho

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