Subiu Ló de Zoar e habitou no monte, ele e suas duas filhas … habitou numa caverna, e com ele as duas filhas. Então, a primogênita disse à mais moça: Nosso pai está velho, e não há homem na terra que venha unir-se conosco, segundo o costume de toda terra. Vem, façamo-lo beber vinho, deitemo-nos com ele e conservemos a descendência de nosso pai… E assim as duas filhas de Ló conceberam do próprio pai. A primogênita deu à luz um filho e lhe chamou Moabe: é o pai dos moabitas, até o dia de hoje. A mais nova também deu à luz um filho e lhe chamou Ben-Ami: é o pai dos filhos de Amom, até o dia de hoje. Gênesis capítulo 19, versículos 30 a 37
Ló era sobrinho de Abraão e habitava na região à sudeste do Mar Morto, na cidade de Sodoma. Deus resolveu destruir Sodoma e Gomorra por causa da sua corrupção moral mas resolveu poupar Ló e sua família, porque ele se mantivera íntegro, além de ser parente de Abraão.
Dois anjos foram então enviados a Sodoma com essa missão destruidora e advertiram Ló, sua esposa e duas filhas solteiras – as casadas moravam com seus maridos – para que deixassem imediatamente a cidade e não olhassem para trás. Durante a fuga, a mulher de Ló contrariou essa orientação e foi transformada em estátua de sal. Ló e suas duas filhas acabaram se refugiando numa caverna, onde viveram como reclusos durante o resto da vida dele – é possível dizer que ele não suportou o fardo emocional do que acontecera e decidiu se “enterrar” em vida.
Ora, naquela época, as filhas solteiras tinham que obedecer os desejos do pai porque as mulheres não tinham voz própria. Mas, ao obedecer, estavam destruindo seu próprio futuro pois, quando o pai morresse estariam velhas para procurar marido e constituir família, condição necessária para ter garantia de sustento e obter aceitação social.
É chocante perceber que um pai tenha conscientemente condenado suas próprias filhas a destino tão doloroso. Ló pensou apenas em si mesmo e não teve qualquer consideração com suas filhas, que dedicaram sua vida a cuidar dele – tal postura de Ló me faz lembrar o costume antigo na Índia que obrigava as viúvas dos marajás a serem enterradas vivas junto com os cadáveres dos maridos.
O fato é que as duas filhas de Ló não aceitaram passivamente sua sorte e usaram de criatividade, dentro dos limites da sua situação, para encontrar uma saída. A Bíblia têm vários exemplos desse tipo de atitude corajosa e desesperada – lembro aqui do caso de Tamar, que engravidou do próprio sogro, Judá, quando ficou sem marido.
As filhas embebedaram o pai e mantiveram relações sexuais com ele. Ambas engravidaram e seus filhos deram origem a dois povos – os edomitas e os amonitas – que viveram em constante rivalidade com os descendentes de Abraão (Israel).
Certo ou errado? Esse caso é um daqueles em que as pessoas ficam em dúvida sobre o que pensar: as filhas de Ló fizeram certo ou errado? Será que elas pecaram?
As relações sexuais entre parentes próximos, na época de Ló, não tinham a mesma conotação de imoralidade dos dias atuais – basta lembrar que Abraão e Sara eram meio irmãos. Só bem depois do tempo de Ló, na época de Moisés, esse tipo de relacionamento foi proibido por Deus (Levítico capítulo 18, versículo 3).
Ora, o apóstolo Paulo ensinou (Romanos capítulo 2, versículo 14) que na ausência de lei formal proibindo determinada coisa, a consciência da pessoa deve servir de lei para ela. E as filhas de Ló sabiam que estavam erradas, tanto assim que decidiram embriagar o pai antes de manter relações sexuais com ele. Sabiam que estavam erradas e ainda assim foram em frente, logo não há dúvida que pecaram.
Agora, é interessante perceber que Deus aceitou bem a atitude das duas mulheres e isso fica bem claro no texto. Primeiro, o texto bíblico não critica diretamente as ações delas e muito menos fala sobre qualquer punição dada a elas por Deus. Tanto foi assim, que ambas foram abençoadas com filhos e tornaram-se matriarcas de povos importantes.
Depois, as duas mulheres conseguiram voltar, mesmo de forma indireta, à linha da Promessa de Deus, que começou com Abraão e culminou com Jesus. Digo isso porque uma mulher moabita, Rute, e outra amonita, Naamã, acabaram ambas na genealogia de Jesus.
Vemos nessa história mais uma prova de como Deus é misericordioso. Muito mais do que imaginamos! Ele entendeu o desespero das filhas de Ló e o fato delas estarem sem saída – tinham que obedecer o pai e não poderiam constituir famílias próprias. E as aceitou como eram. Entendeu sua situação.
É triste observar que o nome dessas duas mulheres corajosas e sofridas não foi preservado no texto bíblico. Foi-lhes tirado pelo autor do texto, segundo a tradição, Moisés, algo fundamental: sua individualidade. Entraram para a história apenas como as filhas de Ló.
Esse foi um ato de machismo, coisa comum entre os homens, tanto daquela época como de hoje em dia. Machistas não apreciam atos de independência exercidos por mulheres. Simples assim.
As duas filhas de Ló passaram para a história anônimas, mas aqui vai minha pequena homenagem a elas.
Com carinho